O discípulo que não conseguiu sair: bastidores de uma denúncia abafada na Nova Acrópole

 A história a seguir é baseada em uma denúncia real. Para preservar a identidade da vítima — que continua vinculada emocionalmente à instituição — nomes, locais e detalhes foram modificados. A essência dos fatos, no entanto, corresponde fielmente ao que foi relatado em documentos e trocas de e-mails obtidos pela reportagem.



Um sonho de fraternidade que virou pesadelo

Há alguns anos, Joaquim e Maria deixaram para trás uma vida estável em seu país natal e se mudaram para Orivânia, uma pequena ilha no Oriente Médio. O objetivo era apoiar a expansão da Nova Acrópole, instituição que se apresentava como uma escola internacional de filosofia depois de anos de dedicação em seu país de origem.

Ao chegarem, entregaram praticamente todas as suas economias ao dirigente local, chamado aqui de Manoel, para dar início à escola. Joaquim acreditava estar cumprindo uma missão espiritual. Mas, pouco tempo depois, começou a notar sinais de que algo estava profundamente errado.

Denúncias internas abafadas

Depois de anos sofrendo vários tipos de abusos psicológicos e extorsão financeira, decidiu denunciar a situação ao seu CAP - Coordenador de Áreas e Países - Amelie. Em e-mails enviados ao coordenador regional, Joaquim descreveu uma série de irregularidades:

  • O MN Manoel vivia às custas dos discípulos, sem contribuir financeiramente para a escola.
  • Aulas do “programa branco” eram constantemente canceladas, privando os membros de sua formação filosófica.
  • Relatórios oficiais eram manipulados para mascarar a realidade.
  • Havia uso de títulos, condecorações e cargos como moeda de troca para obter favores pessoais.
  • Membros que não arcavam com “contribuições extras” eram perseguidos e, em muitos casos, expulsos.
  • Manipulação nas relações interpessoais, cultivando ódio e atrito entre os discípulos, para atingir seus fins econômicos.
  • Exploração da vulnerabilidade feminina, inclusive com histórico de casamento com mulheres que sustentavam-no.

Em um dos trechos, Joaquim escreveu:

“Hoje fui impedido de participar da cerimônia semanal. Quando insisti em permanecer na escola para ler, ameaçaram chamar a polícia. Já vi muitos irem embora por cansaço dos abusos. O ideal virou desculpa para manipular pessoas.”

Em outro trecho:

“Entreguei o pouco dinheiro que eu tinha para ajudar a escola. Quando o dinheiro acabou, passei a ser perseguido”.

A resposta oficial

O coordenador regional, identificado aqui como Amelie, respondeu em tom conciliador, mas relativizou as denúncias:

“Vejo manipulação de ambos os lados. Se há ódio em seu coração, nada poderá florescer. Talvez seja melhor buscar outro país, outro dirigente a quem possa seguir.”

Em vez de investigar as acusações, a liderança escolheu transferir o problema. Joaquim foi rebaixado, perdeu seu título de Machado, suas economias e acabou retornando ao país de origem.

Apesar das denúncias duras que havia feito, Joaquim terminou sua correspondência com palavras de gratidão e submissão. Em uma das últimas mensagens, escreveu:

“Amelie, agradeço por ter me ouvido com tanta atenção. Suas palavras me fizeram pensar muito, especialmente quando mencionou que parte do problema também pode estar em mim. Reconheço que me expressei de forma dura em alguns momentos, mas tudo o que apontei foi, antes, algo que tentei resolver diretamente com o dirigente local. Ainda assim, aceito sua orientação e, confiando em sua visão, pedirei minha transferência de volta ao meu país para seguir servindo ao ideal. Levo comigo as experiências positivas vividas em Orivânia e o compromisso de amadurecer como discípulo. Muito obrigado pela paciência e pela oportunidade de aprender com esta situação.”

Esse desfecho é emblemático: a vítima, após relatar manipulações, abusos financeiros e perseguições, termina acreditando que também é manipuladora, agradece ao coordenador e reafirma sua confiança nele. Trata-se de uma inversão psicológica brutal — a violência é naturalizada, a culpa é internalizada, e a vítima se coloca como a responsável por “melhorar”. É um retrato claro de como a manipulação sectária consegue transformar até a dor em submissão.

Ainda dentro da instituição

O mais impressionante, contudo, é que Joaquim não abandonou a Nova Acrópole. Mesmo após ter sido vítima de abusos no estrangeiro e de ter perdido seu título, ele permaneceu ligado à instituição. Vale lembrar que o mesmo discípulo já havia sido lesado anos antes em outro escândalo interno, nas mãos de um outro golpista, que será omitido aqui para preservarmos a identidade da vítima.

Ainda assim, a ruptura nunca ocorreu.

Análise

1. O padrão de resiliência na submissão

Apesar de entregar suas economias, denunciar irregularidades, ser rebaixado e até ter sido vítima de fraudes anteriores, Joaquim manteve-se fiel à Nova Acrópole. Essa lealdade, superior ao senso de autopreservação, é típica de vínculos sectários, nos quais a identidade pessoal é absorvida pela estrutura simbólica do grupo.

2. Mecanismos psicológicos em jogo

A interpretação deste caso não deve ser vista apenas como experiência isolada, mas como exemplo de mecanismos psicológicos reconhecidos na literatura acadêmica que operam em contextos sectários.

  • Dissonância cognitiva: admitir os abusos significaria reconhecer que anos de dedicação e sacrifício foram em vão (Festinger, 1957).
  • Dependência emocional: o grupo oferecia pertencimento e propósito; sair seria como sofrer uma morte simbólica (Singer, 2003).
  • Inversão da culpa: a liderança induziu Joaquim a acreditar que ele também manipulava, minando sua confiança na própria percepção (Lalich & Tobias, 2006).
  • Esperança de redenção: mesmo após denunciar, Joaquim ainda sonhava em “salvar” o ideal, mostrando apego maior à ideia do que às evidências (Langone, 1993).

3. Significado institucional

O caso demonstra como a Nova Acrópole:

  • Tolerou e encobriu abusos em Orivânia,
  • Revitimizou o denunciante, retirando-lhe títulos e acesso à formação conquistados depois de anos de dedicação integral,
  • Não ofereceu reparação, apenas sugeriu sua saída ou mudança de país.

O resultado final foi a manutenção do poder da hierarquia sobre a verdade. Mesmo vítimas de abusos, muitos membros seguem presos ao grupo por mecanismos de manipulação emocional e espiritual.

Conclusão

A história de Joaquim não é apenas sobre um discípulo em um país distante, mas um retrato de como instituições com características sectárias podem manter seus membros fiéis mesmo após sucessivas violações. Mais do que fatos isolados, o caso mostra uma cultura de blindagem hierárquica, inversão da culpa e dependência emocional, onde a vítima acaba culpando a si mesma — e permanecendo.

Agradecimentos

Deixo meu reconhecimento aos dirigentes que, mesmo permanecendo dentro da instituição, têm visto neste canal um espaço seguro para expor irregularidades e buscar transformação. Que suas vozes sirvam para pressionar a liderança a finalmente respeitar a dignidade das milhares de pessoas de boa fé que dedicam suas vidas a um ideal hoje distorcido. Sigam trazendo à luz o que precisa ser denunciado.

Referências

Festinger, L. (1975). Teoria da Dissonância Cognitiva. Rio de Janeiro: Zahar.

Lalich, J., & Tobias, M. (2006). Cativeiro Psicológico: Como recuperar a vida depois de uma seita. São Paulo: Paulus.

Langone, M. D. (1994). Recuperando-se de seitas. São Paulo: Paulus.

Singer, M. T. (2003). Cults in Our Midst [ainda sem tradução integral em português, mas artigos dela foram traduzidos e citados em coletâneas brasileiras].

Antunes, C. (2012). Psicologia das Seitas: Persuasão, Poder e Dependência. Petrópolis: Vozes.

Beit-Hallahmi, B., & Argyle, M. (1997). A Psicologia da Religião. São Paulo: Paulus.

Araújo, F. J. F. (2010). Religião, Poder e Manipulação: Psicologia Social das Seitas. Belo Horizonte: Autêntica.

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